segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Numa madrugada infestada de calores e urgências

“I Know not what tomorrow will bring.”
(Fernando Pessoa, última frase dita por ele no leito de morte – trad. “Eu não sei o que o amanhã trará”) 

Numa madrugada infestada de calores e urgências, ele supôs pela primeira vez quais seriam os motivos que o afligiam desde épocas mais felizes, aparentemente, percebeu a pouca e tênue verdade que o impedia de ver a verdade. Era um monstro claro como a porta do quarto entreaberta, lucidez - megera – que nos arremessa sem aviso no fosso incipiente da consciência associada a um tipo raro de percepção, o bom senso. 


(Leitor, caso você não tenha se reconhecido nessas palavras, dispense essa leitura. Procure literatura mais feliz.)

Assim, em mais um dia sou humanamente forjado pelos rigores do cotidiano, cotidiano, cotidiano, cotidiano, cotidiano, cotidiano, cotidiano, cotidiano, cotidiano, cotidiano, cotidiano, cotidiano, cotidiano, cotidiano, cotidiano, cotidiano, cotidiano, cotidiano, cotidiano, cotidiano, cotidiano, cotidiano, cotidiano, cotidiano, cotidiano. The End, um ponto final é uma vida.

VS

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Seis razões sobre o porquê não gosto de praia e uma sobre o motivo de sempre ir

“E no meio de um inverno eu finalmente aprendi que havia dentro de mim um verão invencível.” 
(Albert Camus)

Sei o quanto é paradoxal, mas fazemos tanto o que odiamos em nosso cotidiano, que pensei ser coerente continuar a odiar algo, ainda que no período de férias. Sei também que parece estranho alguém não gostar de praia, mas o fato é que eu detesto. Eis as minhas razões:

1 - normalmente as padarias são horríveis, ao menos não tive o prazer de ir a alguma que tivesse esse templo civilizatório que é a padaria, as boas padarias, em tempo. Parece mais uma das minhas estranhices, mas sempre desconfio de cidades ou locais que não tenham boas padarias, que não tenham bares para se beber uma boa cerveja sozinho com um livro e que tenham muitas farmácias. Acho sempre lugares que merecem a nossa desconfiança. Muitos devem pensar que talvez não haja cidades para meu exotismo no Brasil, mas consigo me virar bem em várias, ainda que BH tenha um lugar especial no meu peito. De toda forma, essencial mesmo são as duas primeiras condições, a terceira...bem, justifica-se pelo "slogan": "Coisas melhores para uma vida melhor através da química.".

2 - as pessoas tendem a relaxar e aproveitar silenciosamente o fato de estarem na praia, invejo um pouco essa competência, acho até monástica. Ficar com os pés na areia, aproveitando a brisa, cultivando o ócio ancestral, enfim... Infelizmente, não consigo. Já tentei, mas ficar sem fazer nada é terminantemente difícil para mim, gosto mesmo é de internet rápida, livros, computadores, supermercados bons, padarias civilizatórias, livrarias infinitas, quem sabe mesmo uma fumacinha de carros e um cinza concreto façam bem a minha mente. Talvez. Mas ócio praiano é definitivamente impossível para mim.

3 - irrita-me muito também a frequente impossibilidade de ler jornal de forma honestamente tranquila com rajadas de vento inesperadas que fazem a sessão de cultura sempre voar para longe e a de política ficar engordurada porque caiu na porção de uns camarões meio desconfiados. No final, muitos desses voos parecem proféticos, quase visões de um oráculo, mas a bem da verdade só quero mesmo é ler o jornal.

4 - a comida quase sempre de gosto e confecção duvidosas. Saliento que sempre o chamamento da fome fala mais alto que minhas exigências culinárias, mas como sempre meio contrariado. Talvez sejam as praias que vou com a família, algo entre as praias da massa e as de uma classe média esforçada. Penso que deve haver opções melhores, mas ainda distantes do bolso contido de professor. As cervejas também incomodam, sei que é uma chatice, mas num mundo em que Skol e Brahma reinam, Heineken é uma minoria perseguida e cervejas artesanais são forças estranhas, é difícil ser feliz.

5 - a música, a música, como esquecer... Ainda que reconheça a validade cultural do mais que se escuta na maioria das praias do Brasil, não é o que gosto de ouvir. O máximo que já tive a oportunidade de ouvir foi algo entre Jack Johnson e Bob Marley, que em um mundo repleto de Cláudias, Psiricos, Arrochas, Anitas, etc., parece um bálsamo, mas não é o bastante. 

6 - incomoda também a insistente cobrança para que você goste de praia, para que tenha um sorriso pendurado no rosto sempre, para que você fique no sol ou pegue uma corzinha quando já a tenho, para que você faça castelos de areia com os filhos quando eu prefiro fazê-los com Lego, entre outras cobranças que fazem dos melancólicos, mal humorados e afins seres estranhos a esses espaços de alegria salgada, ensolarada, arenosa e algo gratuita.

7 - entretanto, apesar de tudo listado acima, vou com frequência à praia, porque minha família, minha esposa e minhas filhas gostam por demais e como as amo mais do que odeio praia, submeto-me. Vejo isso como o meu ramadã, o meu jejum anual. Expiação dos pecados. Oportunidade de sublimar os erros. Tempo de praia.

Para Clarice, Isadora e Camila, por Estéfani Martins.

sábado, 5 de novembro de 2016

Uma lenda do baixo

Para Jaco

Os bares não ouviam a sua música. O ouvintes não assobiavam as suas melodias tão órfãs. Sua música não ganhou a eternidade. As gravadoras não sabiam da genialidade desse homem. Feito Cecil, era um incompreendido. Mesmo as vanguardas não o entendiam.
Eu era pouco além de um garoto, louco para ser o Charles Mingus, veja, não um Charles Mingus, o, veja bem, o Charles Mingus. Desde os tempos de banda da escola, eu era o estranho, pois não ouvia aquelas músicas que consumiam a alma e não o contrário, que é o certo. Foi quando, um homem entrou na loja de instrumentos – uma igreja para mim – pois minha mãe pensava que eu morava ou trabalhava lá, nenhum dos dois, eu era um fiel confesso e abnegado daquelas imagens, daquelas esculturas, daquele templo feito de guitarras, gaitas, trombones, saxofones....baixos. Ah! Os baixos, mulheres a ser tocadas e acariciadas, voz rouca e o jazz pouco para traduzir esses encontros. Enfim, lá, um cara e um baixo, contra-baixo, olha o respeito. Mulher grande, seios médios e equilibrados, quadril farto de boa progenitora e mãe dos ritmos que eu sonhava entoar. Ele disse que queria vendê-lo (-la) para mim. Ela parecia feliz. Foi uma pechincha que consumiu a economia de anos e todos viveram felizes entre um acorde e a falta de outro.

VS, ouvindo o pai de todos...Mingus, Mingus, Mingus.

Novas do baixista


Ele montou outro grupo. De Jazz claro...porque montar uma prisão? Chamou dois amigos, conheciam-se desde quando tocavam com as bocas e os dedos sós. Naquele tempo, nas casas, passou a solar desvairadamente. Entre amigos, tudo é possível. Por isso, a banda virou um duo de sucesso. Passaram a tocar música clássica, porque lá as partituras valem mais. Ele, desolado, continuou a solar sozinho nos bares repletos de mesas reservadas pela ausência.


VS, ainda ouvindo o mestre Mingus.

Sobre a morte

Ontem morreu mais um mestre eterno da dramaturgia brasileira, Paulo Autran, segundo a viúva, a atriz Karin Rodrigues, ele manifestou o desejo de ser cremado. Ela completou dizendo que para o ateu Paulo Autran: "A verdadeira crença do Paulo era no ser humano e na arte". Fico às vezes pensando como a morte é ingrata, se como os gregos pensavam, ela for uma entidade, vai ser infeliz nas suas escolhas e equivocada nos seus alvos no raio que a parta, porque tem tantas figuras públicas por aí...vociferando bobagens inoportunas que não mereciam se quer lugar numa mesa de buteco. Daí, fico triste e emocionado por ver gente desse quilate ir embora, ainda que do alto dos seus 85 anos, ele poderia ter ficado um bocadinho mais, feito mais umas peças, visto mais umas belezas na vida, ido a mais alguns museus, talvez fumado mais uns cigarrinhos regados por um bom vinho. Dizem por aí, que grandes homens não são medidos por suas virtudes, mas por seus vícios e pelo número e pela qualidade dos seus amigos. Mesmo à distância, acho ou idealizo que ele foi um grande homem mesmo, desses que se faz em poucas e escassas safras. E é nessas horas que fico injuriado com a morte e digo muitas vezes em alto e claro som: por quê vão os bons e vão ficando essa variedade besta de homens mais afeitos ao presente, ao fugaz, à grana, etc.? Por que os eternos vão embora e nos deixam as boas lembranças, mas como ficamos sem suas atitudes corajosas, sem seu ímpeto, sem seu exemplo? Hoje é um dia triste! Ficam as atuações brilhantes então, além do teatro, sua casa mais encantada e brilhante, para nós que podemos aproveitar pouco desse gênio por causa da pouca idade, fica a imagem da televisão na novela "Guerra dos sexos", ele e a diva Fernanda Montenegro, trocando delicadas ofensas enquanto jogavam um no outro o que tinha à mesa, improviso genial e eterno. Clássico. Isso fica, o resto passa. Obrigado Paulo Autran.

Estéfani, ouvindo uma casa silenciosa num sábado triste, bobo e quente.

O tubista

Numa manhã, dessas meio bestas, meio úmidas
Ouço sem cerimônias uma banda tocar
No meio disso
Lembro da tuba
Do bombardão
.
.
.
Experimento uma cosmovisão
Que entrega
Que desapego
Apresento-lhes: o tubista.

Grande homem dos bastidores das bandas, das filarmônicas, das sinfônicas e de tudo quanto há de aglomerados mais ou menos inspirados de músicos. Nesses grupos, não se vê a tuba esmerando-se em solos, em arpejos, porque o lugar dela é no pano de fundo das orquestras, esquecida em sua gravidade.
Além desses atributos capuchinhos, ao tubista especialmente aos mais modestos em suas posses, ressalto a arte imprescindível de fazer caber esse generoso instrumento em seus carros populares, quem sabe até equilibrando-se em motonetas, motocas e lambretas, mas nesse quesito destaco com honrarias os tubistas que usam o transporte coletivo, os ônibus, os metrôs, que devoção à música, que odisséia apaixonada pela coadjuvância! 
Tubista, esse devotado, esquecido pelo jazz, eclipsado pelo trompete, pelo sax, até mesmo pela suave e tímida clarineta. Quem são os grandes tubistas da história que minha ignorância, quem sabe, não me deixa ver? Quais são as peças musicais que os tornaram eternos? Quem foi seu Chopin? Tantas perguntas intrigantes, até revoltantes, mas em meio a isso tudo fica a pergunta maior, a mais incômoda para muitos: o que é uma tuba?

VS

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Aparentes transcendências

Quatro amigos de décadas, prontos para delirar cervejas num bar. Chega um sacerdote vestido dignamente de preto e branco - não era o Garrincha, não era o garçom do Rossi - e nos oferece um copo americano de santidade. Recusamos, éramos demônios demais para um copo tão pequeno.

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Arrisco

Arrisco
um salto de risco
entre a levada
dos tambores do maracatu
enfim
arrasto
comigo o ritmo louco
d’África madrasta
medrando falsete
das caixas que declaram guerra.

A esperança, megera,
que corrompe a todos
com a necessidade
de algo menos do que o carnaval
e suficiente para um
novo auricular
nos sons
novo sol, se
somos poeira
Pó, destino dos bons
se do sol não souberem gestar manhã.

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Morro do tempo

Eu corro contra o tempo
Eu corro contra o vento.

Donde venho
O vento é filho do tempo.

Eu morro contra o tempo
Eu morro
Eu morro
Nesse tempo de subidas,
descer não é uma opção.

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Para dias que parecem noites

Para dias que parecem noites.
Para cores que parecem dissabores.
Para choros que parecem gritos.
Para ritos que precedem atritos.
Para rios que fabricam lama.
Para todos os males uma chama
convertida em mito.

Para o juiz que engoliu o apito.
Para a mulher que se chama Benedito.
Para todos os remédios que dançam a coreografia tradicional da morte.
Para um casal em um carro aflito.
Para o primeiro filho, um sítio, no meio do nada.
Para que ele possa ouvir a melhor educação.
Para almejar além da arrebentação.
Sempre.
Devotadamente.
Imprescindivelmente.
Docemente.
Lindamente.

Música.

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sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Letras para o diário

Coração
palavra vil que se adianta
reflexo antes de ser objeto.
Natureza no seu mais deslumbrante aspecto
mais ainda vilania e enfim dejeto.

Orquídea contrariando a pulsação
intento sem fim
porque o espaço e o tempo são o novo de novo.

O poema não tem óbito e nem artéria
só tem veia, só tem dano
mas quem se dana mesmo nesse mundo pouco
é o amor, escravo eterno do princípio,
morte e fim tentando o suicídio.

VS

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Carne Duo

Minha carne não é carne sem a tua
é algo, sim, inominável,
indefectível sem ser permanente,
tolo,
sem vida,
sempre
no caminho
do que não era para existir.

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Vazio

Preencho o vazio em mim com minhas dúvidas
Aquelas, inconfessáveis
Mortas, por sua inexistência no mundo dos vivos
Sutis, como se não existissem.
Verdade não confirmada.
Luz sem clareza.
Abraço sem aperto.
Lançamento sem arremesso.
Dentro sem o avesso.

Sou indefinível, porque minhas muitas perguntas indefinem-me.

Ainda bem, ser desse mundo de certezas,
Talvez fosse demais.

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Derradeiro abismo

O preço mais cruel
e incomparável da vida
é a insatisfação. 
Monstro mudo, monstro sem lugar, mas ainda monstro
amálgama último
que nos talha
entre a falha e o cadafalso.

Nasce dessas entranhas o derradeiro abismo
e um cisma irrompe
primo distante
do carisma
que nós,
mortos,
vemos na vida.

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terça-feira, 4 de outubro de 2016

Quero de volta

Quero de volta a mim mesmo
mesmo nu, pedindo socorro.
Quero a mim mesmo de volta
ao tormento, a chuva e ao esporro.
Quero mais uma volta comigo mesmo,
mas, calma, não há caminho sem alma.
Quero dar uma volta em mim mesmo
para ver se há lama no corpo em chamas.

Quero de volta
no bar, onde estabeleci meu governo,
o rock que sai do meu corpo.
Lá, luzes clamam roucas
por uma escuridão feita de sufoco
no corpo ausente onde morro.

É isso.

Quero a volta
em mim, de um trago novo
do amor, um beijo mudo e mais um pouco
do calor, na carne travestida de osso.

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Oração

Livros, façam-nos serenos e fortes nos nossos díspares caminhos
Nos dê a benção de estarmos juntos mais algumas vezes
pois somos o fruto de um tempo sem frutos
somos a última colheita ante o caos
o ocaso para nós nada significa
pois, quando estamos juntos, calamos o desencontro, calamos o medo, calamos o silêncio.

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Enredo

Parece claro agora, depois do desfile, que a veia do problema – o atraso da escola - foi o enredo lento demais deste ano, foi o samba que mergulhou num caos malandro, moroso e lerdo. Parecia um samba-canção de Candeia, de Cartola, de Monarco. Mas não deu. Neste ano quem ficou com o campeonato foi a escola que - militar - desfilou impecavelmente, pena que o samba não foi com ela.

VS

domingo, 2 de outubro de 2016

Lama, lamento

Para Chico Science

Como explicar a maldição benéfica de seus versos?
Irmão, estamos no mesmo barco em construção
Somos madeira semelhante da mesma cadeira
Somos a cerveja sem ter quem queira
Somos centro
Somos firmamento
Somos o cimento do castelo de ar onde o mar poético habita.

Caro irmão, que sonho você arquitetou
Que poeira alta você levantou
Que misérias a beleza de suas cantorias evitou
Salve! Salve! Salve o solto e o virado
Salve a serra e o serrote
O remendo e o corte
O tambor e o silêncio.

VS

Declaração de amor na guerra

Para Camila

Declaro a ti
toda paz
que meu coração em guerra
tortuosamente
faz com o teu.

Dois amantes
canhões de desejos
entrincheirados nada valem.
Eis minha bandeira,
meu amor,
a da celebração
juntos
próximos
amalgamados.

Guerra à rendição,
aos submissos,
nosso amor, altivo
é imperativo
é uma justa
de imemorial
relevância
contra
toda paz
nutrida de qualquer
inanição.

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Beth Gibbons

Ela
vergada
entre a vontade e o estéreo
entre o analógico e o mortal
entre o perder e o desesperar
nas brumas equalizadas pelo seu tabaco gêmeo
sua voz elegantemente em mono
adianta-se
atira-se
no abismo que a aproxima de nós,
ouvintes.

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Assassinato

Tiros. De todos os lados, mas destinados a indeterminadas cabeças. Uma bala navega entre as ideias. Morte de turista causa indignação.

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sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Do gasto ciclo: poemas para um dia menor - Opus X

Parecia ousadia
de um Horácio
ousar saber.
Neste mundo?
Não é indigesto como estar farto e ter que comer mais?
Não é inoportuno como o ódio de animais?
Não é triste como ser navio e não ter um cais?
Não é a nudez em dias áridos e invernais?
Não é a salada em dias carnais?
Não é o imposto quando não se quer jamais?
Não é a dúvida sem Houaiss?
Não é o pouco quando se quer mais?
Não é a velhice quando já se viveu demais?
Não é a vontade de viver diante de confrontos fatais?
Não é o filho negado pelos pais?
Não é um dia claro e lindo emoldurando funerais?

Não. 

É necessidade urgente 
em meio à barbárie 
de se ter vontade de começos 
quando só se tem finais.

VS


Do gasto ciclo: poemas para um dia menor - Opus IX

Estive pensando...
Quando vi quão blasfemo parecia
Saí disfarçando
Assobiando
Como um ator canastrão atuando
Fui então passando
Passando 
Passando
Até que me reconheci
Afogado em gerúndios
Imundo
Passando
Passando
Passando.

VS

Do gasto ciclo: poemas para um dia menor - Opus VIII

Sabe...
As águas de um rio não sabem amar
Por isso passam, madrastas e unidas,
Polaridade de bestas a nos assombrar
Remédios para o peso solitário de carregar um fardo chamado rio
Que deságua caudaloso
Num mar de vontades e de receios
Poucos riscos
Medo de nadar
De afogar-se
De beber
De brindar
De celebrar a vida ávida por passagem
Passageira de um barco que navega vesgo
Em águas que nos banham com as águas de nossos prantos
E nos assombram
Entre tantos
Tantos
.
.
.
Cantos.

VS

Do gasto ciclo: poemas para um dia menor - Opus VII

Mágoa
caudalosa
em mim
não rompe
mais que um dia.

Mas
não sei,
feito
um rio assoreado
ela pode ir sedimentando-se
nas beiradas da razão
e
assim
faz-se
a catarse
e a mágoa
qual um diabo de um blues
arrisca-se
infiltra-se
consome
vomita
as almas azuis
encarceradas no desconfiado sucesso das canções querendo ser novas, mas inocentemente sem saber que no verso desse verso encomendado
jazem esquecíveis e dispensáveis
como corpos de mortos frescos balançando feito estranhas frutas,
mas longe, longe, bem longe das maravilhosas divas inviáveis e quase mortas com um fiapo de voz.

VS

Do gasto ciclo: poemas para um dia menor - Opus VI

Hoje
não me lembro
como poetas
lembravam-se de lembrar antigamente.
Antídoto?
para o insolúvel
para o injustificável
para o afável que não existe mais.

Memória do absurdo
nesses tempos de cólera amiga
fomenta a inimiga das gentes
a chegar
e tomar
e rodear-se
do que é familiar.
Rima rica de desencontros,
hábito a deslembrar.

VS

Do gasto ciclo: poemas para um dia menor - Opus V

Certo do
universo,
repleto,
esqueço
e
adormeço
sem sair dos quentes e onipresentes espaços
e
entre aços
permaneço
permaneço
permaneço
permaneço
permaneço?

VS

Do gasto ciclo: poemas para um dia menor - Opus IV

Carrego
um soco palpável
e remediado
contra o pouco
que me sobra
de bonança.

Porque a tempestade virá
mesmo nas já tempestuosas paragens
gestadas
nas armadas
semelhanças
entre
as partes da minha alma desigual.

VS

Do gasto ciclo: poemas para um dia menor - Opus III

Noutros tempos
ainda
ontem
acreditava
em dezembros
em humanidades
celestiais
- esperas -
certezas de ave vã.

Em contraponto
segue
sadia
a grande amargura
de estar estéreo
num submundo mono. 

VS

Do gasto ciclo: poemas para um dia menor - Opus II

Pérfida
é a
impáfia
de Midas
de fazer ouro
sem sair do lugar;
cala o trabalho,
proclama o vulgar
e
assim
s
o
l
i
t
á
r
i
o
sou
a sina
cínica
do homem 
- arremedo de Midas,
Midas invertido,
Midas a mendigar -
que
partido ao meio
tenta
amordaçar-se
para
não
se
lamentar.

VS

Do gasto ciclo: poemas para um dia menor - Opus I

Enquanto penso
invento
uma nova forma de perder
o desengano da vida
raso
cálice
que a tudo intimida
e
entre
nós
desata
a esperança
enforca
a celebração.

Luz,a cega
nesses tempos
de pouca manhã.

Oca, a espera
improvável
das sementes de romã.

Louca, a doçura segue
dispensável
amarga e vã.

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Sede de Deus

Deus é uma sede que nunca cessa e que se alimenta dos medos e das perguntas de todos nós.  

VS

domingo, 25 de setembro de 2016

Sobre o vegetarianismo

Para meu irmão vegetariano e querido.

Numa terra distante, havia um monstro que se alimentava de toda forma de vida. Faminto, sem ter mais o que comer, porque mastigou a vida toda do seu mundo como se dela não fizesse parte, a sobrevivência o empurrou para mais próximo daquele povo pequeno e agitado. As dúvidas faziam-no hesitar, mas o chamamento da carne era implacável. Já podia sentir na boca a porção de vida que se desfaria entre mastigadas. Seu estômago era um abismo escuro e vazio. Cada vez mais governado pela fome ávida, sedicioso, foi aproximando-se e iniciou o ritual imemorial da caça, observou cuidadosamente suas presas, pesou sua velocidade, tamanho e ferocidade, escolheu a primeira refeição, um jovem, estimava ser mais tenra a trama de músculos e mais improvável a capacidade de reação devido à inexperiência. Para tanto, espreitou-se para cada vez mais perto, mais perto, mais perto, mais perto, mais perto... de nós. Podia sentir o cheiro, intuir os pensamentos da presa, ouvir a respiração ritmada e despreocupada. 

Tornou-se vegetariano.

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Livros sãos

Livros são entidades que respiram, bebem, comem e sorvem os leitores. São nós encadernados, traduzidos em palavras, em números e em imagens. Livros são gente feita de papel. Livros são a juventude que nunca foge. São a sabedoria da velhice que chega precoce. São um ciclo generoso que nunca se esgota. São pontes em um mundo de rios. 


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Poeta

O poeta é um tipo de verso humano. É o verso, reverso e controverso de todos os homens, que não são mais que dúvidas, carinhosamente arrumadas entre a vida e a dívida. Nascemos dependentes dos piores e mais sanguinários credores. Nascemos devedores. Nascemos, deuses feitos de dores. Nascemos, credo. Nascemos, sonho. Nascemos, morremos. Só o poeta vive uma morte na vida e uma vida na morte. Vive o  paradoxo de não ser lido, de trabalhar e ser metonímia do ócio e, mesmo assim, ser farol da nossa pragmática e denotativa espécie.

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Entre uivos vazios e poucos, ainda me lembro

Numa noite mais insone do que dormida, desperto de sonhos intranquilos, metamorfoseado em uma metáfora de Kafka sentado em uma privada ouvi o que parecia minha consciência encasulada num desejo absurdo por transcendência e pela mágica breve do era uma vez. Ouvi o que pareciam gritos de vidas secas que eu vivi. Ouvi a cegueira da noite e seus silenciosos conselhos fraternais. Ouvi que era um estranho num ninho estranho e mecânico. Ouvi Coltrane pregando que o amor é supremo e não é perseguidor, que é certo que nada na Terra além do amor torna uma pessoa necessária e que só o amor, e não a razão, é mais forte do que a morte. Ouvi, noturno, sozinho, a mim, que sou mais retrospectiva do que homem, que sou mais subsolo da memória póstuma do que existência e náusea, que sou mais infernos artificiais do que paraísos. Ouvi o claro enigma do baú de espantos do casmurro que fui, sou e serei. Ouvi toda poesia do ser e do nada. Ouvi que um livro é uma arma carregada. Ouvi flores do mal em você e em mim, ouvi ira, ouvi desassossego, ouvi cortiços, escolas, titãs, avarentos, apanhadores, mentecaptos, zepelins, alienistas, bestiários. Ouvi que onde há Big Brother não há civilização, não há utopias, não há arte em ter razão, porque a maior força que nos une é a ignorância sobre nossa maior escravidão: a paz para poucos feita de guerras para muitos. Ouvi através do espelho Mingus dedilhar que mover-se é canônico. Ouvi o cheiro do ralo de um admirável mundo novo que ainda não veio e que derreteu no ar uma tempestade. Ouvi sermões e ouvi muito barulho por nada. Ouvi de Dante que o inferno era uma comédia divina, mas ainda engraçada. Ouvi de um louco as relações perigosas do seu diário otimista. Ouvi quixotescamente as lágrimas do Blues e a liberdade do Jazz. Ouvi enfim a minha porção do infinito. Ouvi a fogueira de livros, telas e discos que me consome numa construção eterna. Ouvi o que parecia um corvo grasnando as palavras tais: é mais do que isso, é mais. Ou vi nada em um sonho de uivos vazios e poucos.


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quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Das derrotas

Vendo de uma perspectiva tão inusitada quanto indesejável, do nível da soleira da porta, rente ao rodapé feito de um azulejo português de fina decoração, com bom ângulo de visão do solado do sapato italiano de rara e distinta pelica, ele viu enfim que havia perdido o bom combate. 

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Das entranhas e das profundezas

É nos buracos, nas depressões, nos fundos dos poços, nas estradas sem volta, nos abismos, nos ermos, nos confins, nos precipícios, nos despenhadeiros, nos desfiladeiros, nas voragens, nas funduras, nas depressões, nas fronteiras, nos limites, no abissal, nos fossos, nas covas, nas crateras, nas entranhas, nas baixezas, no insondável, no impenetrável, no inatingível, no pélago, nas profundezas, que nós comungamos de fato com o próximo, com o outro, com o desconhecido as nossas certezas poucas que nos picos e nos cumes só vemos de longe, bem de longe, ainda que a maioria de nossos semelhantes seja normalmente apenas vista.

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Da série - Contos máximos para uma vida mínima - Dia noturno

Numa noite dessas que parecem mais noturnas, dormi um sono sonâmbulo de tanto cansaço. Quando acordei, desejando o dia, numa hora que não me lembro, vi que a noite ainda insistia em cobrir com seu manto escuro o mundo. Sofri o peso ainda presente dos meus sonhos, mesmo desperto. Ouvi muitas vezes pessoas que diziam ter sonhado acordadas, mas não imaginava possível. Talvez fosse isso, talvez já fosse dia, talvez ainda fosse noite. Talvez, a bem da verdade, haja dias que pareçam noites.

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sexta-feira, 29 de julho de 2016

Secas palavras

Tudo era tão seco.
Tão seco.
Tão Graciliano, tão mundo.
Palavras, distrações.
Se poucas, são ações.
Se muitas, distrações.
Falar, escrever muito é não escrever, é não pensar.
É tergiversar, é não dizer, é negar o direito de todos à expressão e ao entendimento.

É a morte da palavra.

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