sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Do gasto ciclo: poemas para um dia menor - Opus X

Parecia ousadia
de um Horácio
ousar saber.
Neste mundo?
Não é indigesto como estar farto e ter que comer mais?
Não é inoportuno como o ódio de animais?
Não é triste como ser navio e não ter um cais?
Não é a nudez em dias áridos e invernais?
Não é a salada em dias carnais?
Não é o imposto quando não se quer jamais?
Não é a dúvida sem Houaiss?
Não é o pouco quando se quer mais?
Não é a velhice quando já se viveu demais?
Não é a vontade de viver diante de confrontos fatais?
Não é o filho negado pelos pais?
Não é um dia claro e lindo emoldurando funerais?

Não. 

É necessidade urgente 
em meio à barbárie 
de se ter vontade de começos 
quando só se tem finais.

VS


Do gasto ciclo: poemas para um dia menor - Opus IX

Estive pensando...
Quando vi quão blasfemo parecia
Saí disfarçando
Assobiando
Como um ator canastrão atuando
Fui então passando
Passando 
Passando
Até que me reconheci
Afogado em gerúndios
Imundo
Passando
Passando
Passando.

VS

Do gasto ciclo: poemas para um dia menor - Opus VIII

Sabe...
As águas de um rio não sabem amar
Por isso passam, madrastas e unidas,
Polaridade de bestas a nos assombrar
Remédios para o peso solitário de carregar um fardo chamado rio
Que deságua caudaloso
Num mar de vontades e de receios
Poucos riscos
Medo de nadar
De afogar-se
De beber
De brindar
De celebrar a vida ávida por passagem
Passageira de um barco que navega vesgo
Em águas que nos banham com as águas de nossos prantos
E nos assombram
Entre tantos
Tantos
.
.
.
Cantos.

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Do gasto ciclo: poemas para um dia menor - Opus VII

Mágoa
caudalosa
em mim
não rompe
mais que um dia.

Mas
não sei,
feito
um rio assoreado
ela pode ir sedimentando-se
nas beiradas da razão
e
assim
faz-se
a catarse
e a mágoa
qual um diabo de um blues
arrisca-se
infiltra-se
consome
vomita
as almas azuis
encarceradas no desconfiado sucesso das canções querendo ser novas, mas inocentemente sem saber que no verso desse verso encomendado
jazem esquecíveis e dispensáveis
como corpos de mortos frescos balançando feito estranhas frutas,
mas longe, longe, bem longe das maravilhosas divas inviáveis e quase mortas com um fiapo de voz.

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Do gasto ciclo: poemas para um dia menor - Opus VI

Hoje
não me lembro
como poetas
lembravam-se de lembrar antigamente.
Antídoto?
para o insolúvel
para o injustificável
para o afável que não existe mais.

Memória do absurdo
nesses tempos de cólera amiga
fomenta a inimiga das gentes
a chegar
e tomar
e rodear-se
do que é familiar.
Rima rica de desencontros,
hábito a deslembrar.

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Do gasto ciclo: poemas para um dia menor - Opus V

Certo do
universo,
repleto,
esqueço
e
adormeço
sem sair dos quentes e onipresentes espaços
e
entre aços
permaneço
permaneço
permaneço
permaneço
permaneço?

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Do gasto ciclo: poemas para um dia menor - Opus IV

Carrego
um soco palpável
e remediado
contra o pouco
que me sobra
de bonança.

Porque a tempestade virá
mesmo nas já tempestuosas paragens
gestadas
nas armadas
semelhanças
entre
as partes da minha alma desigual.

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Do gasto ciclo: poemas para um dia menor - Opus III

Noutros tempos
ainda
ontem
acreditava
em dezembros
em humanidades
celestiais
- esperas -
certezas de ave vã.

Em contraponto
segue
sadia
a grande amargura
de estar estéreo
num submundo mono. 

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Do gasto ciclo: poemas para um dia menor - Opus II

Pérfida
é a
impáfia
de Midas
de fazer ouro
sem sair do lugar;
cala o trabalho,
proclama o vulgar
e
assim
s
o
l
i
t
á
r
i
o
sou
a sina
cínica
do homem 
- arremedo de Midas,
Midas invertido,
Midas a mendigar -
que
partido ao meio
tenta
amordaçar-se
para
não
se
lamentar.

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Do gasto ciclo: poemas para um dia menor - Opus I

Enquanto penso
invento
uma nova forma de perder
o desengano da vida
raso
cálice
que a tudo intimida
e
entre
nós
desata
a esperança
enforca
a celebração.

Luz,a cega
nesses tempos
de pouca manhã.

Oca, a espera
improvável
das sementes de romã.

Louca, a doçura segue
dispensável
amarga e vã.

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Sede de Deus

Deus é uma sede que nunca cessa e que se alimenta dos medos e das perguntas de todos nós.  

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domingo, 25 de setembro de 2016

Sobre o vegetarianismo

Para meu irmão vegetariano e querido.

Numa terra distante, havia um monstro que se alimentava de toda forma de vida. Faminto, sem ter mais o que comer, porque mastigou a vida toda do seu mundo como se dela não fizesse parte, a sobrevivência o empurrou para mais próximo daquele povo pequeno e agitado. As dúvidas faziam-no hesitar, mas o chamamento da carne era implacável. Já podia sentir na boca a porção de vida que se desfaria entre mastigadas. Seu estômago era um abismo escuro e vazio. Cada vez mais governado pela fome ávida, sedicioso, foi aproximando-se e iniciou o ritual imemorial da caça, observou cuidadosamente suas presas, pesou sua velocidade, tamanho e ferocidade, escolheu a primeira refeição, um jovem, estimava ser mais tenra a trama de músculos e mais improvável a capacidade de reação devido à inexperiência. Para tanto, espreitou-se para cada vez mais perto, mais perto, mais perto, mais perto, mais perto... de nós. Podia sentir o cheiro, intuir os pensamentos da presa, ouvir a respiração ritmada e despreocupada. 

Tornou-se vegetariano.

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Livros sãos

Livros são entidades que respiram, bebem, comem e sorvem os leitores. São nós encadernados, traduzidos em palavras, em números e em imagens. Livros são gente feita de papel. Livros são a juventude que nunca foge. São a sabedoria da velhice que chega precoce. São um ciclo generoso que nunca se esgota. São pontes em um mundo de rios. 


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Poeta

O poeta é um tipo de verso humano. É o verso, reverso e controverso de todos os homens, que não são mais que dúvidas, carinhosamente arrumadas entre a vida e a dívida. Nascemos dependentes dos piores e mais sanguinários credores. Nascemos devedores. Nascemos, deuses feitos de dores. Nascemos, credo. Nascemos, sonho. Nascemos, morremos. Só o poeta vive uma morte na vida e uma vida na morte. Vive o  paradoxo de não ser lido, de trabalhar e ser metonímia do ócio e, mesmo assim, ser farol da nossa pragmática e denotativa espécie.

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Entre uivos vazios e poucos, ainda me lembro

Numa noite mais insone do que dormida, desperto de sonhos intranquilos, metamorfoseado em uma metáfora de Kafka sentado em uma privada ouvi o que parecia minha consciência encasulada num desejo absurdo por transcendência e pela mágica breve do era uma vez. Ouvi o que pareciam gritos de vidas secas que eu vivi. Ouvi a cegueira da noite e seus silenciosos conselhos fraternais. Ouvi que era um estranho num ninho estranho e mecânico. Ouvi Coltrane pregando que o amor é supremo e não é perseguidor, que é certo que nada na Terra além do amor torna uma pessoa necessária e que só o amor, e não a razão, é mais forte do que a morte. Ouvi, noturno, sozinho, a mim, que sou mais retrospectiva do que homem, que sou mais subsolo da memória póstuma do que existência e náusea, que sou mais infernos artificiais do que paraísos. Ouvi o claro enigma do baú de espantos do casmurro que fui, sou e serei. Ouvi toda poesia do ser e do nada. Ouvi que um livro é uma arma carregada. Ouvi flores do mal em você e em mim, ouvi ira, ouvi desassossego, ouvi cortiços, escolas, titãs, avarentos, apanhadores, mentecaptos, zepelins, alienistas, bestiários. Ouvi que onde há Big Brother não há civilização, não há utopias, não há arte em ter razão, porque a maior força que nos une é a ignorância sobre nossa maior escravidão: a paz para poucos feita de guerras para muitos. Ouvi através do espelho Mingus dedilhar que mover-se é canônico. Ouvi o cheiro do ralo de um admirável mundo novo que ainda não veio e que derreteu no ar uma tempestade. Ouvi sermões e ouvi muito barulho por nada. Ouvi de Dante que o inferno era uma comédia divina, mas ainda engraçada. Ouvi de um louco as relações perigosas do seu diário otimista. Ouvi quixotescamente as lágrimas do Blues e a liberdade do Jazz. Ouvi enfim a minha porção do infinito. Ouvi a fogueira de livros, telas e discos que me consome numa construção eterna. Ouvi o que parecia um corvo grasnando as palavras tais: é mais do que isso, é mais. Ou vi nada em um sonho de uivos vazios e poucos.


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quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Das derrotas

Vendo de uma perspectiva tão inusitada quanto indesejável, do nível da soleira da porta, rente ao rodapé feito de um azulejo português de fina decoração, com bom ângulo de visão do solado do sapato italiano de rara e distinta pelica, ele viu enfim que havia perdido o bom combate. 

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Das entranhas e das profundezas

É nos buracos, nas depressões, nos fundos dos poços, nas estradas sem volta, nos abismos, nos ermos, nos confins, nos precipícios, nos despenhadeiros, nos desfiladeiros, nas voragens, nas funduras, nas depressões, nas fronteiras, nos limites, no abissal, nos fossos, nas covas, nas crateras, nas entranhas, nas baixezas, no insondável, no impenetrável, no inatingível, no pélago, nas profundezas, que nós comungamos de fato com o próximo, com o outro, com o desconhecido as nossas certezas poucas que nos picos e nos cumes só vemos de longe, bem de longe, ainda que a maioria de nossos semelhantes seja normalmente apenas vista.

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Da série - Contos máximos para uma vida mínima - Dia noturno

Numa noite dessas que parecem mais noturnas, dormi um sono sonâmbulo de tanto cansaço. Quando acordei, desejando o dia, numa hora que não me lembro, vi que a noite ainda insistia em cobrir com seu manto escuro o mundo. Sofri o peso ainda presente dos meus sonhos, mesmo desperto. Ouvi muitas vezes pessoas que diziam ter sonhado acordadas, mas não imaginava possível. Talvez fosse isso, talvez já fosse dia, talvez ainda fosse noite. Talvez, a bem da verdade, haja dias que pareçam noites.

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