sábado, 27 de fevereiro de 2016

Calor

"Ora, o que é a felicidade senão o calor dos atos e o contentamento da criação?" (Antoine de Saint-Exupéry)

Um sorveteiro é um escravo da temperatura. Esse era o meu aforismo mais absoluto. Minha lápide. Para mim, era uma máxima que se transformava em paradoxo. Eu sempre odiei “tempo de calor” como minha vó vociferava sempre. Passei minha infância com minha mãe, minha avó e meu avô maternos numa cidade pequena do interior. Lugar quente como aquele nem o inferno. Meu avô era próspero. Fazia sorvetes para a massa, como ele dizia. Sorvete tem que ser para o povo, tem que ser para refrescar, tem que ser barato, viu meu único neto. E assim fui único neto do único ex-judeu, se é que isso existe, da única filha da única sorveteria da cidade única de tão quente. Sou fruto, filho e produto do monopólio e da singularidade. Sabia que estava fadado, desde os oito anos, quando minha mãe voltou cabisbaixa e resignada para a casa dos pais, a ser a continuidade oficiosa do meu avô. Era eu ou mais ninguém. Nem à minha mãe meu avô confiaria o negócio bastante próspero da família. Logo minha mãe, “cabeça de vento”, “doidivanas”, “maconheira”, “hippie descalça”, entre outras expressões pouco elogiosas. Conflito de gerações, diriam. 
Outra coisa, por que um sorveteiro porvir deveria ler dois livros por semana, devidamente sabatinados pelo avô? Para que ter consciência plena sobre a própria pequenez? Para que lucidez em um inferno inescapável e térmico? Que peso, caro avô, você colocou tão cedo sobre as costas daquele menino leitor?
Sempre odiei o calor, pensava pragmaticamente que era assim porque eu tinha a responsabilidade hereditária de aplacar essa sensação nos outros fazendo gelados, picolés, sacolés, laranjinhas, sorvetes para essa gente encalorada. Sentia-me bombeiro de goelas, um Guy Montag das gargantas, refrescador de almas, mais e exageradamente um deus gelado produzindo frio inacabável num hades provinciano e quente. Sentia-me grande enquanto pequeno, depois, crescendo fui me apequenando, o mundo foi agigantando-se ao meu redor, fiquei doente, crônico, dessas doenças de pele em meio a síncopes. Meus colegas de científico diziam que era coisa de veado. Veado gelado, esse era o caloroso nome com o qual meus pares chamavam-me. Até as meninas.
Sei que a situação ainda era agravada por ser judeu no entendimento deles, ainda que não me entendesse como tal, além de bom aluno. Era o fim. Anos terríveis. Eu era aquele da família que, na casa, comiam-se criancinhas inocentes, que o avô tinha um colchão cheio de dinheiro. Entre infernos escolares, pensava se de fato tínhamos - ou ele teriam - matado Cristo, aliás apanhei por causa disso duas vezes, perto de Natais que me pareciam diabolicamente irônicos. Sempre um filme ou um discurso de um fanático qualquer incitava alguém a bater no único “judeu” das imediações.
Torcia avidamente por dias frios e isso acabava com o negócio, ainda mais quando a concorrência chegou. Nos invernos, na sorveteria, os únicos clientes assíduos eram os mais fundamentalisticamente apaixonados por sorvete, eram meticulosos, exagerados na análise das imperfeições, sempre muito mais críticos do que no verão. Ainda mais naquele tempo, quando a outra sorveteria, a infernal concorrente e paradoxal companhia servia sorvete, lanches, sucos, enfim, uma sorte de produtos impressionante para aquelas paragens. Meu avô foi do assombro à depressão, meses depois, com a sorveteria vazia como um deserto, ele se matou, minha avó o acompanhou como uma boa esposa um ano depois, enquanto isso as economias de décadas de trabalho árduo esvaiam-se.
Minha mãe, ausente e remota como assim queriam que ela fosse, era um fantasma ainda mais etéreo, diáfano e triste. Logo agora que ela podia ser o que quisesse, ainda que velha para alguns sonhos, tinha idade o bastante para sofrer menos e viver mais plenamente. 
Numa noite fria de um ano impreciso, fechei a sorveteria mais cedo, já que era o único "habitué" do lugar por assim dizer, lembrei do Kafka, pensei nesse misto de castelo de gelo e colônia penal que um processo cruel metamorfoseado de vida comum construíra, pensei nessa sorveteria túmulo, pensei na mamãe, nos meus avós, no meu pai que não sabia quem era e - pelo visto - nem minha mamãe, pensei em mim. Quase baixada completamente a porta, um corretor de seguros muito amigo do meu avô interrompe-me apressado. Você pode me vender dois quilos de sorvete de creme? Espontâneo e exasperado, diz o indizível: é porque na outra sorveteria esse sabor acaba rápido, sabe como é. Mau momento para ser honesto. Não tem mais. Mas como? Nem de creme, mesmo no frio e com tão poucos clientes? Pois é, sinal dos tempos, estou em um processo para inovar nos sabores para recuperar a clientela perdida. Boa sorte para você. Caminha dez passos e volta rapidamente lembrando-me que até o próximo final de semana o seguro da sorveteria deveria ser renovado. Assenti com a cabeça.
Em casa, tive uma revelação tão extraordinária e, em especial, libertadora que não fui capaz de sentir a ausência tímida de minha mamãe e nem o bilhete em cima da mesa da sala principal. Enfim, estava tomado pela epifania definitiva. Aquela que liberta, aquela que resume e reinicia uma vida. Pensei no calor e o quanto eu detestava aquela força elementar da natureza, na força criadora e purificadora do fogo. Pensava o quanto a destruição pode ser construtora. Pensava, pensava, pensava. A apólice não interessava, pois o que realmente era fundamental naquele momento era destruir, embora tivesse ligado para o corretor dias depois para que ele renovasse o seguro sem quaisquer alterações para não levantar suspeitas, reclamei ainda que era caro e que achava uma bobagem, mas o fazia em memória de meu avô.
Sentia-me meio criminoso e meio filósofo, pensava sobre o quanto aquela sorveteria continha de contenção e ressentimento e isso me impressionava, pois filosofava impune sobre como algo doce pudesse sair daquela fábrica. Meu plano era simples, um incêndio libertaria-me definitivamente. O dinheiro pouco importava. Eu queria a destruição total daquele negócio. Entre muitas elucubrações, encontro o bilhete de partida de minha mamãe. Fico feliz em saber que ela, mesmo sem mim, havia retomado o rumo errante e incerto de outros tempos. Todavia, algo me incomodava, pois triste estava eu por constatar que estava sozinho de fato.
Aos planos novamente me lancei, como queimar o gelo, pensava ironicamente. Foi quando me ocorreu a beleza que é a simplicidade de tomar um sorvete num dia quente, de amar e ser amado, de comer o simples e sentir-se um rei, entre tantas realizações módicas e econômicas que a cada vez menos pessoas encantam. Pensei então um plano infalivelmente simples e prosaico, geladeiras antigas e algumas novas contém um gás inflamável sempre lembrava meu velho avô. Reforçava sempre a necessidade de cuidado e de concentração quando manipulávamos os velhos maquinários. Pensei em colocar alguma fonte de calor sob o reservatório de gás de ao menos dois congeladores, um mais velho e outro mais novo, pensei em colocar imediatamente antes de fechar a sorveteria, mas seria muito suspeito. Pensei em colocar quando chegasse, antes de qualquer um pensar em um sorvete, acalmava-me o fato de naqueles tempos o sorvete de minha família não ser uma opção para mais ninguém, quase.
Chegou o dia, era uma segunda meio lerda e nublada, dia perfeito para não se tomar nada gelado e insuspeito para um incendiário de ocasião. Pensei em algo que deixasse pouco ou nenhum rastro, lembrei do meu avô dizendo que fazia quando criança pavios de papel torcido embebidos em óleo de cozinha porque queimavam mais lentamente.
Dia comum, cheguei na sorveteria, 7:30 como sempre e como meu avô havia me ensinado. Dois pavios feitos de papel de pão e um saquinho de óleo bem empacotados viajavam no meu bolso. Deixei uma porta semi cerrada como de costume, fui aos congeladores, embebi cuidadosamente os pavios com óleo e os coloquei debaixo dos reservatórios de gás, peguei caixas de papelão, os produtos de limpeza e os dispus como se fosse fazer uma limpeza no local, como havia alardeado para uns poucos frequentadores na semana anterior. O fogo queimava calmamente os pavios enquanto eu começava a abrir a loja, sei que parece estúpido ou mesmo clichê emprestar normalidade a uma cena de crime, mas pensei muito a respeito e vejo que estava parcialmente certo, já que a explosão e posterior incêndio foi um sucesso, bem maior que eu poderia calcular, inclusive. Com a explosão que ocorreu algum tempo depois de ter acendido os pavios fui jogado para fora da sorveteria quando limpava o balcão mais distante da área de produção onde fiz meu arranjo. Lembro de pouca coisa depois disso, as lembranças ficam mais claras a partir do momento que uma pessoa desconhecida joga um pouco de água no meu rosto e me pergunta se estava com alguma dor. Olho para a sorveteria e vejo fogo intenso saindo da parte de trás do negócio da minha família já começando a tomar a frente onde por décadas meus avós serviram a cidade. Da melancolia fui ao choro conveniente e algo verdadeiro, mas meu corpo aquecia-se com a satisfação de estar livre. Olhando de novo, vi que o fogo, força de vontade muitas vezes imprevista, teimava em tomar os negócios vizinhos.
Noutro dia, o resultado tinha sido desastroso para muitos, décadas reduzidas a ruínas queimadas e fumacentas, dez prédios destruídos e muitas perguntas. Poucos tinham seguro pelo que se comentava no hospital, onde eu me recuperaria de uma providencial e justificadora fratura múltipla em uma das pernas e de escoriações fartas pelo corpo. Sabia que tinha destruído parte importante da vida de amigos do meu avô de longa data, mas não conseguia estar triste, mas sabia fingir. Muitos me visitaram, sempre aliviados por meu avô, sempre previdente, fazer seguro. Ainda ouvi piadinhas tímidas e típicas sobre judeu pensar em tudo, nunca perder dinheiro, etc. Ouvi tudo com o típico alheamento que a dor impõe. Balançava a cabeça, até chorava de dor convertida em sofrimento aparente. Sentia-me horrivelmente satisfeito.
Meses se passaram, recebi o seguro, não sem muitas perguntas. Seguro gordo para um negócio magro, mas o corretor do sorvete de creme dizia sem reservas que judeu ganha até quando perde e eu respondia que não havia ganhado tanto assim, porque havia perdido o negócio da família, minha ocupação e ainda ganhado uma muleta que provavelmente não deixaria de me acompanhar por um longo e penoso tempo. 
Mentira, mancando para a estação de trem da cidade dava – com a alma tépida - passos leves e trôpegos em direção a uma liberdade fria num lugar qualquer de invernos rigorosos e demorados.

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sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Só tenho raiva

Só tenho raiva para guardar
No meu peito mora um temporal
Na mente, uma tempestade
Uma vontade ancestral de socar a existência
De ser resistência contra a barbárie
Da forma mais primitiva
Na verdade, toda essa raiva embute um sonho
Conturbado
Paradoxo puro
Ódio oco
Amor entre dentes
Meu sonho mesmo é ser um soco.

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sábado, 20 de fevereiro de 2016

Das quantias

Lembra quando dinheiro nada significava
Quando o importante era negociar a brincadeira
Dar e vender amor
Emprestar delicadeza sem anotar a quantia no caderninho
Então
Enganaram você

Dinheiro é tudo.

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Do pó

Do pó viemos, dizem
Ao pó voltaremos, é o que mais temem os que dizem
Nessa existência granulada
Sobrevivemos.

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