Para Beethoven e Schiller, com amor
I
Numa praça qualquer, num terreno indistinguível
Diante da beleza retumbante de uma obra de vocês
Uma criança, imóvel, contemplava a orquestra que se formava
Vocês superaram o inexorável, o absoluto da morte
Ensinaram um caminho lindo para tempos horríveis
Ofertaram um mapa para os perdidos
Um rumo para aqueles que se esqueceram
Da humanidade que há neles próprios
Nessa confusão, um som luta para se distinguir.
II
A orquestra que começa solitária
adensa-se lentamente - nove, noventa, novecentos
No compasso da grandeza sinfônica
Sua música e sua poesia infinitas
Eram afronta à vida que corria rápida e indiferente na rua
Essa indiferença foi nos matando, sabes
Éramos muitos, somos bilhões, mas sozinhos
Presos em nossas individualidades e em nossos individualismos
Agora presos em nossas casas e isso é um privilégio.
III
Tempos duros e paradoxais
Em que abraçar e beijar soam como agressão
Em que amantes e amados vergam-se
Sem relutância à distância necessária para haver um futuro de abraços
O mundo queima em divergência, medo e incerteza
Somos novamente peste, pestilência e pesticida
Somos tudo e nada num turbilhão de vontades reprimidas
Somos um arremedo do que vocês sonharam
Entretanto, somos imprevisíveis, lembremos da lição do poeta.
IV
“Ó, amigos, mudemos de tom!
Entoemos algo mais prazeroso
E mais alegre!”
Sejamos todos um só nas nossas solidões
Sejamos todos naqueles que lutam a luta diária por nós
Sejamos um nesse tempo de distâncias e desinteresses
Sejamos sociedade e união pelas dores de múltiplas perdas
Somos bem mais do que aquilo que não esquecemos de sonhar
Somos mais do que uma distração dos deuses.
V
Somos amizade, família e discernimento
Somos quintais acolhedores repletos de parentes que não conhecemos
Somos casas em que a porta está sempre aberta
Somos a taça quase vazia que ainda brinda
Somos o peixe que se multiplica por força dos apetites moderados
Somos o que quisermos juntos, somos multidão,
Sejamos um e muitos, sejamos juntos, sejamos união, porque
“Ela nos deu beijos e vinho e
Um amigo leal até a morte”.
VI
Somos muito, mas estamos cansados de estar desconfiados
De nós mesmos, de nossos amigos, da limpeza de nossa higiene
Somos turbilhão, somos repressão de dentro para dentro
De fora para dentro, de fora para fora
Somos falsos messias, falsos profetas, falsos falsificadores
Somos falsificáveis, somos farsas, somos o álcool que infecta
Somos tudo aquilo que repudiamos e também aquilo que sonhamos
Somos inclusive tudo que poetas e filósofos nos avisaram para não sermos
Somos o cotidiano que atropela a beleza e a fraternidade.
VII
Somos guerras, fome, crime e doença
Somos tudo que falamos de nós mesmos
Somos o velho que morre sozinho e sem cuidados
Somos frascos fracos e quebradiços de um remédio ainda por vir
Somos máscaras pobres e vermelhas brindando com champagne
Resumimos bem os horrores que a arte gritou e redimiu
Somos tudo que a cegueira feita de pestes impôs
Somos o ensaio de um último homem andando sozinho e quase morto
Somos a dança da morte, somos vaidade que contagia.
VIII
No ano da peste, somos noivos do que nos falta
Neste ano, como em alguns outros, aprenderemos duramente pelo exemplo
Ensaiaremos virtudes, seremos o que não fomos
Brindaremos com mais gozo, leremos com mais desespero
Na iminência da morte que macabra e vendada escolhe a esmo
Seremos tributo, oferenda e presente; desprezo e admiração
Seremos furacão dentro de nós mesmos; convulsão barbaramente civilizada
Seremos as vibrações de um terremoto novo, menos sombrio, previsível
Seremos revolução em alma nem tão pequena, nem tão devota.
IX
Será um novo tempo com novas dores e novas alegrias
Será tudo novo, se não, nada valerá nada
Por isso, meus irmãos e irmãs, guardem bem guardados abraços e beijos
Haverá muito trabalho para eles nos dois lados do rio
Deverá haver amor para os que morrem, para os que insistem e para o barqueiro
Guardem os brindes para o que há por vir de bonito e de falta, não será nada igual,
mas será, e é nessas ruínas prósperas que faremos nossa festa possível, enfim:
“Abracem-se milhões!
Enviem este beijo para todo o mundo!”
VS
22/03/2020
Observação: os trechos entre aspas são do poema “Ode à vida” de Friedrich Schiller escrito em 1785 e usado na obra maior de Ludwig van Beethoven: “A Sinfonia Nº. 9” (1824).