domingo, 24 de maio de 2015

Era amor

Ele não dispensava um bom Funk Carioca. Ela expressava-se como num Jazz. Quando oferecia bebida aos amigos, parecia Fitzgerald sussurrando "Tea for two". Seu filme, um petardo chamado "Whiplash". Era tão agradável que os amigos perdoavam seu anacronismo. Uma garota de 16 anos amante de Jazz em 2015, era um dinossauro num Pet Shop. Educada, fina sem ser arrogante, mas ainda um dinossauro delicadamente movimentando-se entre poodles e pugs. Ele, um boa praça, estudava à noite com um afinco diurno, trabalha o dia inteiro de motoboy, numa SP em que a velocidade era a única segurança para manter o emprego. Entre corredores de carros, aquele garoto negro esforçado filho da senhora que era a merendeira da escola vivia rotineiramente o perigo de ser um jovem preto e pobre numa SP se amor. Ela, pais professores universitários, concursados, nem se lembravam como era a outra vida, remediados como diziam, deram tudo que podiam à única filha, deram amor incondicional, boas escolas, prateleiras cheias de livros e discos, o gosto pelo Jazz. Os outros dois filhos eram menos aristocráticos, nada na verdade, faziam particulares, trabalhavam juntos num negócio de internet que a irmã e os pais eram incapazes de entender. Num dia desses bem bestas, numa livraria cheia de excentricidades, ela olhava com devoção uns novos LPs recém relançados. Jazz, claro. "Kind of blue", "A love supreme", "Coisas", tudo lhe interessava naquela prateleira. Como uma deferência que só os aristocratas poderiam merecer, o rapaz abre dois dos LPs para que ela pudesse escutá-los em vinil pela primeira vez. Lindo, ela pensava. Pediu para abrir o Coltrane e ouviu aquela linda prece cósmica ao amor incondicional. Ele, bem na frente da livraria seria vítima da celeridade, o barulho assusta mesmo ela que estava com os fones. Não era de se interessar, mas o barulho parecia tão vivo como uma das ranhuras do disco. Na calçada, um jovem de uns 19 anos, negro, ainda de capacete, ouvindo todos os palavrões que a boca não poderia falar de um senhor, que parecia a ela envolvido na batida. Ele dizia que estava bem, perguntava sobre a moto. O senhor, furioso, perguntava quem pagaria pelo carro arranhado. Ele, sem capacete, era o Coltrane vivo, paixão instantânea, pensava ela, ele era o Coltrane da capa do disco que eu estava ouvindo. Ela, sem controle sobre si, experimentava a novidade de ter um impulso não destilado pela elegância. Ela corre até ele e pergunta se pode ajudar. Para ele, um oásis entre a indiferença e morbidez curiosa da maioria e a fúria cega do senhor. A moto mesmo já não importava. Ele disse, você pode fazer uma ligação para mim. Ela voltava a si, quando lembrou quem era e voltou a discreta timidez usual. A mãe muito preocupada disse que estaria lá em 30 minutos e se ele havia ficado muito machucado. Ela, atônita consigo mesmo e com seu Coltrane dos trópicos, disse que estava tudo bem com o rosto, o que muito assustou a mãe e impôs uma feição estranha no acidentado, no que ela rapidamente corrigiu-se, quero dizer, ele está bem, alguns arranhões, aparentemente nada mais. Sem qualquer interesse samaritano, prontifica-se a ficar com o Coltrane amado, no que ele resiste não querendo incomodar. Mas ela insiste. Entre uma água e outra, nem a moto muito avariada que uma alma pragmática tirou da rua e recostou em uma árvore atrapalham a improvável conversa. O que você fazia aqui, porque me ajudou? Estava ouvindo um disco e você surgiu dele. Ele pensou que tratava-se de uma menina com algum problema. Espera aí, talvez você me entenda. Ela corre até a seção de discos e traz "A love supreme", ele não pode deixar de perceber uma semelhança enorme entre ele e o cara da foto na capa. O que isso quer dizer? Que eu estava ouvindo um disco e você apareceu. Aliás, o que você gosta de ouvir. Funk carioca, na verdade, gosto de dançar, Passinho, sabe o que é? Talvez. Já ouviu Jazz? Não que eu saiba, mas gostaria de ouvir esse disco do meu brother. Os dois riem contidos. Era amor.

VS

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