quarta-feira, 13 de maio de 2015

Ordinária família


Era um dia ordinário, mais do que comum, voltava do trabalho, depois do bar habitual, depois do cigarro habitual, depois do hábito diário de reclamar da vida. Chego em casa e como sempre, ouço os recados enfadonhos que dominavam a minha chegada sempre melancólica e imprevisível: ex-esposa reclamando da pensão, mãe vez ou outra liga preocupada com meus longos silêncios, filhos pedindo mesada, bancos oferecendo cartões, até que algo novo toma de assalto minha mesmice. Um recado dominado por um sussurro rápido e tenso, um garoto em algum lugar relatava aparentemente um sequestro. Na bina, um número desconhecido. Na voz, nenhum reconhecimento possível. Na urgência do recado, um apelo paradoxalmente tenso e controlado, ainda que nenhum nome tenha sido ouvido. Ouvi mais uma vez, ruídos variados eram camadas a se decifrar, interferências talvez, mas nada que pudesse fornecer pistas óbvias de qualquer coisa que pudesse fazer com que encontrasse meios de avisar os pais do garoto como ele havia suplicado. O que fazer? Esquecer? Seria mais fácil, mas não mais ético. Escolho o mais ético, não necessariamente por sê-lo, mas pelo desafio e novidade impostos a uma vida que até aqui parecia um filme bem óbvio daqueles que dominavam as sessões da tarde da adolescência monótona e inútil da qual não tinha saudade nenhuma. Ouvi algo sobre um jornal que deveria ser comprado, informações nos classificados sobre os valores do sequestro, algo assim. Ouvir de novo, bem, é o que parecia mais sensato, de fato um menino relata o próprio sequestro e diz que os pais devem comprar um jornal que teria informações a respeito de um resgate, mas se tenho que visar seus pais, qual seria a chance de eles lerem a respeito se não sei como encontrá-los? 
Bem, ante as possibilidades, parece que o garoto ia ter um fim trágico, quase aceito o destino implacável dessa história, até que um raio, um lampejo criativo, uma reminiscência de um dos muitos seriados de detetives que tornam minha vida algo razoável parece inspirar uma descoberta: e se o número do celular fosse o do menino? Devo ligar? Mas se isso denunciá-lo? Melhor não. O que fazer? Talvez seja daqueles que os dados pessoais são públicos por obra e graça de seu desapego pela privacidade, mas seria muito absurdo, mesmo para um adolescente. Número de telefone na internet? 
Computador. Google. Digito o número do celular em questão e nada, redes sociais – onde mesmo anotei minhas senhas – 1 hora depois, enfim as acho. Facebook, nada. Twitter, nem sombra de uma pista. Google +, nem sabia que essa existia, um rastro, aparentemente há alguma correspondência. Surpreendentemente, o perfil do garoto no Google tem um celular associado. Não, é de um senhor, ou não. Meia idade; felicidade aparente; fotos de viagens; família grande; aparentemente três filhos e uma esposa lindíssima muito mais jovem, aliás, difícil saber quem são as filhas dentre as mulheres presentes na foto; o menino parece daqueles bem arredios, adolescente, nerd clássico, três ou quatro anos mais velho do que meu filho. O que fazer? Mandar uma mensagem? Esperar o jornal do dia seguinte? Mas qual jornal? Fico pensando se detetives tem tantas dúvidas, tantas incertezas, tantas ausências de planos. Como não sou detetive, permito-me ser imprudente. Mensagem privada: 

“Boa noite, você não me conhece, sou Paulo, acabo de receber uma mensagem muito estranha sobre o paradeiro daquele que penso ser seu filho.Se esta mensagem não fizer nenhum sentido, fique a vontade para ignorá-la.”.
Cerca de 30 minutos depois: 

“Boa noite, como sabe do meu filho? Mas agora ele está bem. Esqueça essa história, foi apenas um susto. De toda forma, agradeço e despeço-me. Olavo.”.
Achei muito estranho e evasivo o tom da mensagem, no que respondo:

“Sr. Olavo, se possível, gostaria de falar com seu filho, porque ele me pareceu desesperado quando ligou na minha casa. Seria muito impertinente da minha parte? Abraço.”.

Lacônico, o senhor Olavo cada vez mais suspeito responde: 
“Seria. Tenha uma boa noite.”.

Fico mais desconfiado e envio uma mensagem que no meu mundo seria bem ameaçadora: 
“Olavo, entenda minha preocupação, vou avisar a polícia sobre o ocorrido. Sem mais.”.

Olavo, de imediato, responde: “Se avisar, mato o garoto.”.

Atônito, indignado, amarrotado... Vou dormir. Para me consolar, digo para mim mesmo: “Nunca mais me meto em briga de família”.

VS

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