Numa noite mais insone do que
dormida, desperto de sonhos intranquilos, metamorfoseado em uma metáfora de
Kafka sentado em uma privada ouvi o que parecia minha consciência encasulada
num desejo absurdo por transcendência e pela mágica breve do era uma vez. Ouvi
o que pareciam gritos de vidas secas que eu vivi. Ouvi a cegueira da noite e
seus silenciosos conselhos fraternais. Ouvi que era um estranho num ninho
estranho e mecânico. Ouvi Coltrane pregando que o amor é supremo e não é perseguidor,
que é certo que nada na Terra além do amor torna uma pessoa necessária e que só
o amor, e não a razão, é mais forte do que a morte. Ouvi, noturno, sozinho, a
mim, que sou mais retrospectiva do que homem, que sou mais subsolo da memória póstuma
do que existência e náusea, que sou mais infernos artificiais do que paraísos. Ouvi
o claro enigma do baú de espantos do casmurro que fui, sou e serei. Ouvi toda
poesia do ser e do nada. Ouvi que um livro é uma arma carregada. Ouvi flores do
mal em você e em mim, ouvi ira, ouvi desassossego, ouvi cortiços, escolas, titãs,
avarentos, apanhadores, mentecaptos, zepelins, alienistas, bestiários. Ouvi que
onde há Big Brother não há civilização, não há utopias, não há arte em ter
razão, porque a maior força que nos une é a ignorância sobre nossa maior
escravidão: a paz para poucos feita de guerras para muitos. Ouvi através do
espelho Mingus dedilhar que mover-se é canônico. Ouvi o cheiro do ralo de um
admirável mundo novo que ainda não veio e que derreteu no ar uma tempestade.
Ouvi sermões e ouvi muito barulho por nada. Ouvi de Dante que o inferno era uma
comédia divina, mas ainda engraçada. Ouvi de um louco as relações perigosas do seu
diário otimista. Ouvi quixotescamente as lágrimas do Blues e a liberdade do
Jazz. Ouvi enfim a minha porção do infinito. Ouvi a fogueira de livros, telas e
discos que me consome numa construção eterna. Ouvi o que parecia um corvo grasnando
as palavras tais: é mais do que isso, é mais. Ou vi nada em um sonho de uivos
vazios e poucos.
VS
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