sexta-feira, 29 de julho de 2016

Anotações do subsolo (primeiro ato)

"Quem combate monstruosidades deve cuidar para que não se torne um monstro. E, se você olhar longamente para um abismo, o abismo também olha para dentro de você."
(Friedrich Nietzsche, 1844-1900 - filósofo alemão)

O corpo a cada dia me parece casa mais frágil, a mente, abismo desconhecido. Quantas vezes traí a mim mesmo, quantas promessas soltas no vazio da minha vontade. Nesse anos passados e próximos, sofri como um gato negro que espalha maldades imaginárias na rua. Bem menos brilhante do que imaginava, sou mais Cassius do que Muhammad. Sou mais vazio do que cerne. Sou mais água do que vinho. Apesar da fraude que me constituo, vou tentar pela última vez fazer da rotina a mulher que a gente deseja com medo que nos mate. Mas matar o que num escritor eternamente de férias, no profissional dominado pelo improviso sistêmico dentro da máquina.
Quem fui, projeto; quem sou, procrastinação e dúvida.
Um rosto vago e inespecífico numa multidão de olhos atentos. A prosperidade que aparento é fortemente influenciada pela mesma superficialidade que sustenta a visão rasteira daqueles dominados pela imposição de uma cultura que faz da diferença uma vilania e da regra, uma devoção. 

Olho para o passado de tantos pequenos fracassos diários e me pergunto o que domino da minha própria vida se não me calar quando quero, se não termino o que comecei, se me superestimo mais do que um crente o seu deus. 
Quem sou eu nesse emaranhado de gentes que habitam em mim,  nessa multidão de estranhos que me consomem com todas as suas vontades prevalentes e urgentes.  
Sou filho da urgência do consumo, preso às vitrines, enjaulado entre magazines que vendem mais do que a alma pode comprar. Sou um corpo que putrefaz a si mesmo com a atenção máxima do seu usuário.  Sou consciente da minha ruína, servo da ideia de que tudo sempre esteve ao meu alcance. Havendo deuses, eles foram muito generosos comigo, deram-me a potência das idéias, em meio ao caos da fraqueza para realizá-las a contento.  
É massacrante ver-se um projeto pretensamente grandioso realizado num papel qualquer. É triste ver-se nu como me vejo hoje, preso a minhas múltiplas e muitas urgências.  Controlado por minhas incertezas.  Destilando auto-ajuda barata em forma de bote de náufrago. Para quê? Pergunto-me diariamente. O que vim fazer por aqui. Quem sou eu? Direcionada a mim mesmo, sem nenhuma originalidade, sem poesia ou literatura, essa é a pergunta mais definidora das minhas incertezas.  Quem sou eu? Por que vacilo? De qual personagem que criei é meu passado?  No final das contas, continuo sendo o garoto do bairro operário? Que continua sem saber o que lhe dá prazer, o que lhe move. 
Sou carcereiro de mim mesmo, eu soltei sem remorso meus próprios demônios para que eles pudessem ir à catequese. Desprezo tudo de bom que eles podem fazer por mim.  Sobressalto-me ao saber do que são capazes, sou vítima da escassez da qual eles se aproveitam para impor-se sobre a pessoa que gosto de pensar que sou. Escrever é terápico dizem muitos. Dizem inclusive que há muitos salvos por esse exercício doloroso que é a escrita. 
A escrita é para mim a maior das vaidades. Nela lanço minhas principais esperanças de que eu não seja apenas aquilo que o ano passado moldou. A escrita não me liberta, não me define, ela apenas parece hoje uma necessidade primordial. Uma última esperança de náufrago cercado de recém-conhecidos num transatlântico.

VS

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